A “ADVOCRACIA” BATISTA

Há uns dois anos, durante uma reunião do Conselho Geral da Convenção Batista Brasileira, no Rio de Janeiro, diante de uma situação jurídica, comentei rindo com dois advogados, líderes destacados da denominação, sentados à minha frente, que escreveria um texto sobre a “advocracia batista”. Um deles, brincando, respondeu: “não mexe com a gente”. Demorou, mas escrevi!


A “advocracia” batista

A democracia batista, nesses 400 anos, já venceu a “patriarcracia”, a “sacerdotecracia”, a “apostolocracia”, a “gerontocracia”, a “episcocracia”, a “poimencracia” e agora, ao que algumas evidências indicam, terá que lutar contra a “advocracia. Não por causa da legítima e saudável necessidade de orientação técnico-jurídica, em face da complexidade da relação entre nossas decisões políticas e suas possíveis implicações jurídicas, mas pelo oportunismo político inerente a todos, porém exagerado e antiético em alguns.

É que alguns, quando não querem cumprir a vontade soberana do povo batista reunido em Assembléia, usam do artifício do parecer jurídico, geralmente fornecido por advogados por eles nomeados para advogar causas do seu interesse em vez de esclarecer imparcialmente.

Como as atas das reuniões de alguns órgãos, para serem aprovadas, precisam de parecer de comissão jurídica, quando um assunto contrário aos seus interesses é aprovado, eis que uma nova oportunidade de debate surge, com pareceres que deturpam o deliberado.

Pastor e advogado

O problema se agrava quando dirigentes, além de pastor e bacharel em direito, são também narcisistas. Nessa condição, ele proclama sua lucidez superior, sua divina e inquestionável autoridade para interpretar “a lei maior”, a Bíblia, acima de qualquer outro simples mortal, usa toda a influência psico-política que a função pastoral exerce e maximiza sua portabilidade da carteira de filiado à OAB para proferir sentenças, sim, sentenças, não pareceres, em relação a tudo.

Diante disso, que enfiem o rabo entre as pernas todos os seus “interlocutores”, se não quiserem correr o risco de serem lançados na fogueira da marginalização (via difamação), bem ao estilo da Santa Inquisição, ou, no bom “advoguês”, se não quiserem “ser processados” – ameaça antiga para amedrontar gente empobrecida e ignorante, usada por dominadores de cultura coronelista.



A necessidade de assessoria jurídica

Não que seja errado contar com uma assessoria jurídica, nem que a colaboração dos irmãos da área do direito seja dispensável. Pelo contrário, a contribuição de bons advogado, especialmente honestos, verdadeiros, crentes sérios e não mero clientes de banco (de igreja) é essencial em nossas Assembléias. O que não podemos deixar continuar acontecendo é a absolutização de pareceres de indivíduos ou grupos de advogados, sob a alegação de que se trata de “parecer técnico” (leia-se sentença), como se isso significasse, necessariamente, neutralidade política.

Neutralidade política?

Neutralidade política é uma posição que não existe. Nem mesmo nas sentenças da magistratura existe neutralidade política. Todas as nossas palavras, sejam manifestas através de linguajar técnico ou popular, produzem efeitos e, portanto, a elas subjaz interesse político, mesmo que seja o de ficar omisso. Omissão e neutralidade são igualmente posicionamentos políticos.

O sentido verbal da advocacia

Advogar – em seu sentido verbal - não é prerrogativa de bacharéis da área do direito, seja ele atuante na iniciativa privada, seja ele funcionário público pago com dinheiro do nosso trabalho. Advogar é uma possibilidade inerente a todos os seres humanos. Todos nós fomos dotados da capacidade de defender nossos interesses. O que se pode discutir é se estamos devidamente qualificados para advogar todas as causas e se estamos socialmente autorizados, através das leis, para o seu exercício nos tribunais do Poder Judiciário.

Qualificação para advogar

Em relação à qualificação, claro é que isso depende do tempo investido por cada um no estudo das leis. Destaco no estudo, porque encontramos pessoas com diploma de Bacharel em Direito que, além de não ter sido estudioso na faculdade, não mais investiu em leitura depois de receber o diploma, a carteira da OAB ou ser aprovado num concurso para ser funcionário público do Poder Judiciário.

Por outro lado, há pessoas que nunca foram ao banco da faculdade de direito, mas, como autodidatas, estudam séria e profundamente os assuntos do seu interesse; nunca entrou numa faculdade de direito, não tem carteira da OAB, mas defendem seus direitos como ninguém. É o caso de Jesus em relação aos pecadores, na linguagem didatica usada por João (I Jo. 2.1).

Autorização para advogar

Quanto à autorização para advogar nos tribunais, esta é uma matéria definida pela lei de cada país. Há causas que não exigem presença de profissional do direito e que o próprio interessado, se julgar-se capaz, pode preparar a defesa de seus interesses. Há outras que o cidadão sequer pode comparecer à presença do juiz se não estiver acompanhado de um profissional do direito, devidamente habilitado na forma da lei.

Destaque-se ainda que a exigência de advogado definida em lei é fruto, como toda legislação, tanto de estudos sérios e profundos em defesa do interesse democrático da cidadania, quanto de lobbies profissionais em defesa de interesses corporativos e até casuísticos.

Fóruns do Poder Judiciário e Assembléias Batistas

Se há exigência da presença de advogados na maioria dos fóruns do Poder Judiciário, o mesmo não ocorre nas assembléias democráticas dos batistas. Nas assembléias, cada membro-mensageiro é advogado e a sentença é proferida pelo voto da maioria dos presentes. Assim, a razão para contarmos com o auxílio de advogados em nossas assembléias visa tão somente estarmos cientes do cumprimento ou não das leis do país e não sermos subjugados por advogados, alguns dos quais a desonestidade é visível, conquanto membros de igrejas.

Sentenças da Assembléia e Sentenças do Poder Judiciário

Parecer de assessoria jurídica sempre será parecer. Cabe ao plenário dar a sentença, pelo voto de aprovação ou rejeição ao parecer, podendo orientar-se ou não por ele. Se o assunto for controvertido e a sentença do plenário ao parecer provocar prejuízos claros de qualquer natureza – seja à instituição, seja aos interesses particulares dos integrantes -, que se busque recuperar o prejuízo através de sentença do Poder Judiciário, na forma da lei. Afinal, não pregamos, nós batistas, corroborando com Paulo, que a autoridade – inclusive a do Poder Judiciário – foi instituída por Deus (Rom. 13.1,5) e está a serviço de Deus (Rom. 13.6)?

O que não pode continuar acontecendo é a soberania das assembléias estarem subordinadas à interpretação que um advogado ou mesmo um grupo deles, dá aos textos da lei. Sim, falo de interpretação porque, na maioria dos casos, chama-se de “parecer jurídico” uma mera interpretação de texto. Não existe interpretação técnica desvinculada de algum tipo de posicionamento político, explicito ou implícito, objetivo ou subjetivo.

Prerrogativa de interpretação de textos

Interpretação de texto também não é prerrogativa de bacharéis em direito. Pressupõe-se que todos que passam pelos bancos de uma escola são ensinados a interpretar textos desde quando são ensinados a ler, até porque toda leitura, sem exceção, é uma interpretação. Além disso, diversas outras atividades profissionais – além das do Direito - exigem especialidade em interpretação de textos, inclusive o pastorado.

Precisamos, portanto, entender melhor o conceito “interpretação de texto” tanto quanto “parecer jurídico”, “parecer técnico”, “manipulação política”, pois todos estão relacionados ao exercício da advocacia e é direcionado para um objetivo que interessa ou, no mínimo, salta inconscientemente, como um ato falho, aos olhos de quem dá o parecer.

Consideração final

Já identifiquei 5 magistrados e uma infinidade de advogados na igreja à qual sirvo como pastor. Já trabalhei em mais de uma dezena de comissões de reforma de Estatuto ou Regimento Interno, de igrejas ou instituições batistas, ao lado de excelentes advogados. A alguns deles devoto uma admiração imensa, seja pela competência técnico-profissional, seja pelo caráter, pela maneira respeitosa, amorosa, sem empáfia, como tratam seus semelhantes. Esses compreenderão e certamente se aliarão ao espírito deste texto: o de coibir aqueles que estão transformando nossa democracia em “advocracia”; que, escondendo-se atrás de um diploma ou carteira da OAB, semeiam a usurpação, tratam nossa gente como feudos de ignorantes, destruindo um dos principais pilares das instituições batistas que é a soberania democrática de suas assembléias.

Originalmente publicado em:
Blog do Edvar: A “advocracia” batista